quarta-feira, junho 24

Esse grande escultor

Alinhar ao centro
foto de Franxxisco

“Assim, tu partes. Na minha idade já não se dá importância a uma separação, mesmo que definitiva. Eu bem sei que os seres que amamos e que nos amam mais se vão separando insensivelmente de nós a cada momento que passa. É também deste modo que se vão separando de si próprios. Estás sentado sobre essa pedra e julgas-te ainda aí, mas o teu ser, voltado para o futuro, não adere mais ao que foi a tua vida, e a tua ausência já começou. É certo que compreendo que tudo isto é ilusão, como o resto, e que o futuro não existe. Os homens que inventaram o tempo, inventaram por contraste a eternidade, mas a negação do tempo é tão vã como ele próprio. Não há passado nem futuro mas apenas uma sucessão de presentes sucessivos, um caminho perpetuamente destruído e continuado onde todos vamos avançando. Estás sentado, Gherardo, mas os teus pés estão assentes no solo com a inquietação de quem experimenta o caminho. Estás vestido com trajes do nosso século, que hão-de parecer feios ou simplesmente estranhos quando o século tiver passado, pois as vestes não são mais que a caricatura do corpo. Vejo-te nu. Tenho o dom de ver através das roupas o irradiar do corpo, que é como os santos vêem as almas, segundo penso. É um suplício quando são feios, mas é um outro suplício quando são belos, dessa beleza frágil que a vida e o tempo atacam por todos os lados e acabarão por tomar-te, mas neste momento és dono dela e tua será na abóbada da igreja onde pintei a tua imagem. Mesmo que um dia o teu espelho te não mostre mais que um retrato deformado onde não ouses reconhecer-te, existirá sempre noutro sítio o reflexo imóvel de ti. E desse modo imobilizarei a tua alma também.

Tu já não me amas. Se consentes em ouvir-me durante uma hora é porque somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar. Ligaste-me e agora desligas-me. Não te censuro, Gherardo. O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo. Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces, ao encontro de quem vais e que porventura te esperam: aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar. Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo. Gherardo, não te enganes sobre as minhas lágrimas: vale mais que os que amamos partam enquanto ainda conseguimos chorá-los. Se ficasses, talvez a tua presença, ao sobrepor-se-lhe, enfraquecesse a imagem que me importa conservar dela. Tal como as tuas vestes não são mais que o invólucro do teu corpo, assim tu também não és mais para mim do que invólucro de um outro que extraí de ti e que te vai sobreviver. Gherardo, tu és agora mais belo que tu mesmo.

Só se possuem eternamente os amigos de quem nos separamos.”

Marguerite Yourcenar - O TEMPO, esse grande escultor

quinta-feira, junho 18

Em todas as ruas te encontro

foto de Pedro Malheiros


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco.


Mário de Césariny

domingo, junho 7

O Catavento



O catavento desnorteado não me diz a direcção do vento, nem eu sei mesmo se isso me interessa, sinto-o e vejo o remoinho à minha volta!
Sigo a viagem de uma sardanita, parede abaixo, parede acima tenta descobrir que movimento desusado se passa no seu espaço natural...

terça-feira, junho 2

Cidade

foto de Gonçalo Pina


Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes e não vejo
Nem o crescer do mar nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pelas sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.

Sophia de Mello Breyner